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sábado, 24 de novembro de 2012
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     Por Arquivos Brasileiros de Oftalmologia
 

Arquivos Brasileiros de Oftalmologia
Print version ISSN 0004-2749
Arq. Bras. Oftalmol. vol.68 no.1 São Paulo Jan./Feb. 2005
http://dx.doi.org/10.1590/S0004-27492005000100024
RELATOS DE CASOS



Síndrome de Charles Bonnet: alucinações visuais em pacientes com doenças oculares - Relato de caso



Charles Bonnet syndrome: visual hallucinations in patients with ocular diseases - Case report





Vitor CortizoI; Alexandre Antonio Marques RosaI; Danilo Sone SorianoII; Leonel Tadao TakadaIII; Ricardo NitriniIV

IPós-graduando nível Doutorado da Faculdade Medicina da Universidade de São Paulo - USP
IIDoutor em Oftalmologia pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - USP
IIIAcadêmico do 6º ano de Medicina da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - USP
IVProfessor Associado do Departamento de Neurologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - USP

Endereço para correspondência






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RESUMO

Neste artigo, os autores descrevem dois casos de síndrome de Charles Bonnet, definida como a percepção de alucinações visuais complexas em pacientes com déficit visual, tendo os pacientes a consciência da natureza irreal do fenômeno. Grande número de casos não é diagnosticado pela ausência do questionamento direto do médico. Em vista do transtorno emocional causado por esta doença, o reconhecimento dos seus sintomas é essencial no manejo destes pacientes.

Descritores: Oftalmopatias; Alucinações; Transtornos mentais; Demência; Baixa visão; Relatos de casos [Tipo de publicação]


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ABSTRACT

In this article the authors report two cases of Charles Bonnet syndrome, defined as complex visual hallucinations in patients with low vision, and the patient is aware of the unreal nature of the phenomenon. A great number of cases is misdiagnosed due to lack of direct questioning by the physician. Since the emotional distress caused by this disease, the knowledge of its symptoms is essential in the management of these patients.

Keywords: Eye diseases; Hallucinations; Mental disorders; Dementia; Vision, low; Case report [Publication type]


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INTRODUÇÃO

A síndrome de Charles Bonnet (SCB) foi descrita em 1760 a partir das características clínicas apresentadas pelo avô do próprio autor, que referiu visões de homens, mulheres, pássaros e construções que mudavam de forma, tamanho e lugar, não sendo aceitas como "reais" pelo paciente. Ele não apresentava alterações sistêmicas ou distúrbios cognitivos, mas sofria de alteração visual secundária a catarata(1-6).

Há alguma controvérsia nos critérios diagnósticos, mas de forma geral esta síndrome pode ser caracterizada pela presença de alucinações visuais complexas isoladas, geralmente associadas a déficit visual, em pacientes sem distúrbios cognitivos ou psiquiátricos, sendo que estes têm consciência da natureza irreal destes fenômenos (1,7).

A maioria das teorias sobre a patogênese da SCB enfatiza a associação com o déficit visual. Dentre as muitas teorias que tentam explicar as alucinações visuais, a mais amplamente aceita é de que estímulos visuais reduzidos ou ausentes justificariam o início dos distúrbios(3). Existe a hipótese de que a redução de supressão de centros corticais superiores causa a liberação de "traços de percepção" geralmente inibidos(8).

Relatamos dois casos semelhantes de SCB, acometendo mulheres idosas, com dificuldade visual bilateral devido à degeneração macular relacionada à idade.



DESCRIÇÃO DOS CASOS

Caso 1

Masc, sexo feminino, 67 anos, branca, procurou atendimento oftalmológico no HCFMUSP devido à diminuição progressiva da visão em ambos os olhos nos últimos cinco anos. Ao exame oftalmológico, apresentava acuidade visual, com melhor correção, de 0,1 em ambos os olhos. A biomicroscopia, tonometria de aplanação, motilidade ocular extrínseca e reflexos pupilares não apresentavam quaisquer anormalidades. No exame fundoscópico observava-se a presença de uma cicatriz fibrovascular disciforme na região macular de ambos os olhos, característico de uma membrana neovascular subretiniana involuída, além da presença de drusas no pólo posterior.

A paciente referia que esporadicamente via uma carroça, a qual vinha em sua direção. Mesmo com a consciência da natureza irreal do fenômeno, era capaz de descrever detalhes do veículo, bem como do condutor. Devido a isto, foi encaminhada para avaliação no departamento de Neurologia do HCFMUSP.

A avaliação neurológica consistiu de exame físico e neurológico completos, nos quais se observou como alteração apenas discreta assimetria de reflexos profundos (os quais à esquerda eram mais ativos). Ao exame neuropsicológico (realizado para se excluir a existência de declínio cognitivo associado ao quadro), a paciente apresentou escore de 28 pontos no mini exame do estado mental(9) (tendo perdido um ponto em cálculo e um ponto na cópia do desenho) e um ponto no questionário de atividades funcionais de Pfeffer(10) (excluindo-se limitações devido à visão). Foi aplicado ainda o inventário neuropsiquiátrico(11), no qual referia, além das alucinações (em freqüência ocasional e intensidade leve), sintomas depressivos (também de intensidade leve e freqüência ocasional).

Caso 2

MPF, sexo feminino, 72 anos, branca, procurou atendimento oftalmológico devido diminuição da acuidade visual em olho esquerdo há 20 dias. Ao exame oftalmológico, apresentava acuidade visual, com melhor correção, de 0,7 em olho direito e 0,15 em olho esquerdo. A biomicroscopia, tonometria de aplanação, motilidade ocular extrínseca e reflexos pupilares não apresentavam quaisquer anormalidades. No exame fundoscópico observava-se uma rarefação do epitélio pigmentado da retina e a presença de drusas em região macular de olho direito enquanto que no olho esquerdo havia um pequeno descolamento seroso da retina neurosensorial na região macular.

A paciente queixava da percepção de vários tipos de alucinações visuais (cortina, pessoas, animais), as quais sabia que eram irreais, pois chegava a tentar tocá-los para convencer-se disto. Mais uma vez, impressionava a descrição dos detalhes, sendo capaz de dizer aspectos da roupa das pessoas que via.

Foi encaminhada para avaliação no departamento de Neurologia do HCFMUSP, onde foi submentida a exame neuropsicológico utilizando-se o questionário de mini exame do estado mental, questionário das atividades mentais de Pfeffer e inventário neuropsiquiátrico, observando-se apenas um estado leve de depressão ocasional.



DISCUSSÃO

Em 1769, o filósofo e naturalista suíço Charles Bonnet relatou o caso de seu avô, Charles Lullin, de 89 anos, que apresentava cegueira por catarata, o qual relatava a visão (não aceitas como reais) de homens, mulheres, pássaros e construções, que variavam de tamanho, forma e lugar. Com a exceção da cegueira, não apresentava quaisquer outros problemas de saúde ou déficits cognitivos. O próprio Bonnet, anos mais tarde, apresentou deterioração visual e percepções visuais semelhante às notadas por seu avô(1-5). Várias descrições sucederam-se e a condição ficou conhecida como síndrome de Charles Bonnet.

Estados degenerativos do sistema nervoso central podem estar relacionados à demência, alucinações e outras alterações na percepção visual(12-14). Dessa forma a maioria dos autores a descrevem como uma situação na qual os indivíduos experimentam alucinações visuais complexas, na ausência de doença psiquiátrica ou alteração da consciência(15).

Estimulação visual reduzida ou deficiente é a explicação mais amplamente aceita para o fenômeno que ocorre na SCB. As alucinações podem durar de alguns segundos até o dia inteiro, estendendo-se por dias ou anos, variando quanto à freqüência e complexidade. Elas podem desaparecer quando o paciente fecha os olhos(12).

Em um caso relatando a associação da SCB com meningeoma parassagital posterior, os autores recomendaram investigar exaustivamente a possibilidade de doenças intracranianas clinicamente inaparentes(16). Eles sugerem que um 'fator cerebral' deve operar para que a alucinação aconteça e que um circuito neural comum medeie as imagens alucinatórias de modo geral.

Estima-se que sua prevalência relatada na literatura médica seja subestimada, dado o caráter de negação da própria doença pelos pacientes(17). Em estudo realizado na cidade de Kitakyushu no Japão, a prevalência geral observada foi de 0,5%, enquanto que em pacientes idosos com baixa visão foi de 0,8%(18). Estudando a prevalência desta síndrome em 500 pacientes que freqüentaram o serviço de oftalmologia do Hospital Universitário de Nijmegen na Nova Zelândia, foi relatada uma incidência de 11% em pacientes com paciente déficit vi-sual(19). Houve também uma associação significante com idade maior que 64 anos e acuidade visual pior ou igual a 20/70. Não foi encontrada associação significativa com o diagnóstico oftalmológico, sexo, ou circunstâncias sociais.

Apesar da síndrome de Charles Bonnet não ser rara em pacientes com déficits visuais, sua descrição em publicações oftalmológicas é incomum(20-23) talvez pelo desconhecimento desta entidade por boa parte dos oftalmologistas.

A SCB está intimamente relacionada com pacientes que têm comprometimento visual de diversas origens. Ela tem sido associada com doenças oftalmológicas como glaucoma(24), degeneração macular relacionada à idade(20,25-26), após cirurgia de translocação macular(27), catarata(3), arterite temporal(28), secundário a tumores da hipófise(29) e lesões corticais(30). Há relato de sua associação com uso de colírio de brimonidina(31).

Em um estudo com pacientes glaucomatosos, foi diagnosticada SCB em 11 pacientes, que representavam 12,3% da população estudada(32). Nenhum dos pacientes necessitou de tratamento após a orientação médica da origem e natureza de suas alucinações.

Outros estudos relataram uma incidência de 12% a 13% de alucinações visuais em pacientes com degeneração macular relacionada à idade apresentados ou membrana neovascular subretiniana(21,25).

A prevalência desta enfermidade aumenta progressivamente com a idade. A maioria dos relatos refere uma maior incidência entre 70 e 93 anos. Não há uma diferença entre os sexos(30).

O prognóstico varia de acordo com a natureza da disfunção visual. Alguns pacientes respondem parcial ou completamente ao tratamento da enfermidade ocular, como na cirurgia de catarata, enquanto que outros somente têm alívio da sintomatologia após a evolução da doença ocular para cegueira completa.

Uma ampla variedade de tratamentos já foi proposta(33). Além maximizar a função visual, psicoterapia e o tratamento de entidades associadas, como depressão, formam a base do tratamento(17). Drogas como anticonvulsivantes podem reduzir ou extinguir as alucinações visuais em alguns casos, enquanto o uso de antipsicóticos nem sempre apresenta uma resposta eficaz(17). O uso de farmacoterapia é indicado de acordo com as características e a gravidade de cada caso(34).

Também é necessário afastar que as alucinações visuais não indiquem uma fase inicial de demência(35-36). Sugere-se cautela ao se estabelecer o prognóstico em um caso individual, particularmente quando a alucinação for de início recente, recomendando acompanhamento com reavaliações neuropsicológicas seqüenciais(37-39). As alucinações relacionadas a SCB tendem a reduzir de freqüência com passar do tempo(40).

O receio do estigma de doenças psiquiátricas faz com que os pacientes escondam seus sintomas dificultando o diagnóstico. O conhecimento, por parte do paciente, que a SCB não é uma doença mental, reduz a ansiedade dele e de sua família.



CONCLUSÕES

Dessa forma, o oftalmologista tem um papel fundamental na triagem e avaliação diagnóstica destes pacientes, através do questionamento direto sobre sintomas alucinatórios, para pacientes idosos com baixa acuidade visual. Estes necessitam de uma abordagem multidisciplinar, envolvendo neurologistas e psiquiatras, para excluir doenças que possam apresentar sintomas semelhantes. O diagnóstico precoce e a informação sobre a doença são essenciais para o alívio do sofrimento dos pacientes com a síndrome de Charles Bonnet.



REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência
Av. Rio Poty, 1870, Ap 101
Teresina (PI) - CEP 64049-410
E-mail: vcortizo@ig.com.br

Recebido para publicação em 19.01.2004
Versão revisada recebida em 18.10.2004
Aprovação em 30.08.2004





Trabalho realizado nos Departamentos de Oftalmologia e de Neurologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - USP.


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